Tinha me esquecido de falar de um conto que escrevi há três ou quatro anos... Não é uma presença constante em minha vida esse tipo de estrutura literária para expressar minhas idéias, então, acho interessante que conheçam mais esse conto.
Tão singelo quanto o personagem Pepe Legal é a história do protagonista desse conto...
A VIDA SEM PEPE LEGAL
Àquela hora da madrugada ninguém saberia, ou melhor, ninguém conseguiria ouvir o grito da mulher do açougueiro em pleno ato. Sinceramente, eu não teria condições psicológicas para descrever os detalhes daquela atrocidade. Muitos sabiam que aquilo poderia acontecer uma hora ou outra, mas preferiram calar-se a contrariar o açougueiro.Afinal de contas, caso o homem viesse a ser contrariado, poderia envenenar a carne que seus fregueses, diariamente, compravam e a tragédia tomaria proporções ainda maiores. Na verdade, o silêncio de uma população inteira não pode ser justificado somente por esse argumento, mas diante de tudo que foi levantado nos autos. Essa é a conclusão a que se pode chegar! E o questionamento tornou-se ainda mais enfático quando se levou em consideração que diante de um homicídio doloso – que foi como o açougueiro foi indiciado –, a população inteira da cidade teria que ser indiciada como cúmplice.
Silêncio geral e ninguém mais conseguiu falar sobre esse assunto sem provocar outro incidente ainda maior. Anos atrás, um dos prefeitos, ao assumir seu cargo, disse que eliminaria com suas próprias mãos a pessoa que tentasse fazer qualquer questionamento a respeito da “Desgraça”, que era como os moradores da cidade referiam-se ao acontecido.
Por uma infelicidade ainda maior, ou talvez obra do destino – como alguns preferem chamar –, numa tarde de quinta-feira, ao sair da escola, um garoto chamado Gledson caminhava pela rua das Palmeiras quando tropeçou em um buraco na calçada e caiu no chão, batendo a cabeça num paralelepípedo. Morreu ali mesmo, em frente à casa do açougueiro.
Obviamente qualquer perito teria condições de constatar que o que tinha havido ali nada mais fora que realmente uma fatalidade, mas a história tomou proporções ainda maiores quando o açougueiro saiu à porta para ver o que havia sido aquele grito emitido pelo garoto de apenas 10 anos.
Quando o açougueiro viu que se tratava de uma criança, correu para ajudá-la, mas esse ato nunca poderia ter sido praticado por aquele homem. Quando ele colocou sua mão na cabeça do garoto e viu que o sangue dele escorria como uma nascente d’água, algo fez com que sua expressão se transformasse. E aquele sangue sujando suas mãos!!!... Naquele exato momento as lembranças de sua mulher invadiram seus pensamentos e, com a mudança em sua feição, levantou-se, segurou o garoto pelos pés e o puxou até dentro de sua casa.
Alguns acharam que a maior violência da História havia sido cometida contra a mulher do açougueiro, mas tenho a relatar que os que entraram na casa daquele homem, na noite do acidente com o garoto, por uma razão que é difícil precisar, perderam completamente a noção de civilidade ao presenciarem o que o facínora (desculpem-me por utilizar esse termo!) havia feito com o menino.
O que tenho a relatar é que em nenhum manual de Medicina Legal aquilo tinha sido descrito... O ineditismo da ocorrência trouxe especialistas de todos os cantos do país à pobre cidade.
Ninguém conseguia chorar. Velório não pôde haver e, depois que houve a divulgação do modo como ocorrera sua morte, tampouco a Igreja permitiu que enterrassem com o menino no cemitério cristão. Na ocasião, o prefeito não conseguiu sequer colocar em prática o que havia prometido à população... por uma simples razão: o garoto ser seu filho! Ao vê-lo, e em seguida o açougueiro, pegou uma faca de mesa e passou a perfurar seus próprios olhos e sua face. Na verdade não conseguia conceber como aquilo havia acontecido exatamente com sua cria, e mais, uma criança de apenas 10 anos de idade...
Tentaram segurá-lo para que não se matasse, mas após ferir sua face, correu sem controle pelas ruas da cidade e acabou caindo sobre uma estaca que apoiava uma das árvores do jardim da praça. Morreu...
O açougueiro pediu desculpas pelo ocorrido e voltou para sua casa, pois ninguém tinha coragem de chegar perto dele. Preso, nunca seria! Simplesmente porque não havia onde confiná-lo e muito menos quem tivesse coragem de colocar suas mãos nele.
Ao entrar em sua casa sentou-se em frente à televisão e a ligou para assistir ao desenho do “Pepe Legal”, seu personagem predileto da HB. Por razões que nem a razão consegue explicar, ria... era um riso que limpava sua alma, que trazia de volta toda sua ingenuidade... mas não eliminava sua culpa! Pelo menos diante daquelas pessoas.
Os anos amenizaram o peso da história e a população, num ato de repúdio e auto-proteção, desviou o curso de um rio para que fosse estabelecida uma fronteira entre a sanidade e a loucura. A casa do açougueiro ficou isolada do restante da cidade, assim, nunca mais haveria uma ligação entre os dois mundos! No entanto, quanto mais tentavam esconder a história de seus filhos, mais o açougueiro passara a ser cultuado como um herói e todos os meninos, ao completarem 10 anos, como prova de coragem e virilidade, eram desafiados a atravessar o rio e entrar na casa do açougueiro trazendo um pedaço de carne lá de dentro.
Num ato de pura insanidade infantil, grupos se formavam em frente à casa do açougueiro durante a noite. Em seguida, tiravam "par ou ímpar" para saber quem seria o primeiro a cumprir o "cerimonial do fim da infância". Não havia medo em suas faces, era algo que somente nessa idade pode ser encontrado e perdoado: ansiedade, curiosidade e inconseqüência.
Entravam empunhando uma faca e saiam com as mãos sujas de sangue – somente eram ouvidos os gritos dos gatos sendo degolados – e um pedaço de carne em uma delas. Seus rostos já não continham aquele sorriso que outrora tiveram, tampouco sabiam o que fariam a seguir... Ao pisarem fora da casa, olhavam para seus companheiros, passavam a faca para o próximo e continuavam a caminhar sem rumo pela noite.
Dizem que durante essa noite a alma do açougueiro caminha com os meninos e tenta confortá-los do peso da provação. É uma noite cheia de perturbações e questionamentos que persegui-los-ão para o resto da vida. O sangue que fica nas mãos desses meninos as mantém geladas durante o frio inverno das montanhas, mas nem assim consegue conter a ebulição de sensações que toma conta de sua mente e alma.
Dez anos passa a ser uma pena para os meninos. Seus pais sabem que estão predestinados a passarem por isso, mas não conseguem abandonar a cidade nem os proíbem de participar da cerimônia. Ninguém fala nada e a vida continua.
A constatação mais triste que se pode chegar é de que muitos desses meninos deixam a cidade quando estão próximos de completar 18 anos e seu paradeiro nunca mais é sabido por lá. Os pais choram escondidos e as mães procuram orar diariamente para que nenhuma maldição os acompanhe.
"Coisas" acontecem todos os dias e ninguém sabe exatamente como explicar, às vezes sabem, mas preferem se calar. Esses meninos, fadados a peregrinarem pelo mundo à procura de suas almas roubadas pelo açougueiro, passaram a trilhar caminhos totalmente fora do habitual, no entanto, perfeitamente compatíveis com sua forma de agir. Sempre, após completarem dezoito anos, passam a cometer crimes em série. Crimes tão atrozes, ou mais, que o cometido pelo açougueiro contra sua mulher e o filho do delegado. Tornam-se "serial killers" e passam a viver pelo mundo à fora.
Uma cidade exportadora de "serial killers" que vê suas crianças partirem e não consegue fazer nada para interromper essa sina. Dor, amargura e nada a fazer...
- Quando os olhos não brilham e o sangue que está em sua mão mantém seu corpo gelado, é hora de matar novamente. Em cada morte é possível encontrar um pouco de alegria para quando o desenho do "Pepe Legal" acabar. – foi o que respondeu um desses "meninos" ao ser capturado e toda história começar a vir à tona.
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