terça-feira, dezembro 26, 2006

DILACERADOS

Acho que estou encontrando algumas coisas interessantes no meu baú de lembranças... Estava pesquisando em meus arquivos a cronologia das peças que escrevi e encontrei mais um conto que gosto muito, mas não me lembrava que havia escrito. Bom, o título do conto é "Dilacerados". Gostei tanto que o adaptei para um roteiro de curta-metragem... É um tanto triste, talvez meio pessimista... mas possui uma estética que me acompanhou por um bom tempo...
Assim, antes de eu voltar a falar de minhas peças, estejam convidados a conhecer mais um conto meu... "Dilacerados"...

Dilacerados

Era oito e meia da noite e ele havia acabado de sair do bar. Não poderia afirmar que não bebera, mas, com toda a certeza, seria inocentado num teste do bafômetro. A bem da verdade, tinha ingerido apenas duas ou três latas de cerveja... sem álcool. Sabia que iria dirigir e, por hábito, nunca bebia nessas ocasiões.
Ao cruzar uma grande avenida da cidade pôde verificar, através de seu retrovisor, que havia uma pessoa caída no meio do canteiro central da pista. Mais do que depressa, deu meia volta em seu carro e retornou para verificar o que estava acontecendo.
Quando parou o carro, sentiu um enorme calafrio. Por alguns instantes perdeu os sentidos e quase caiu. Apoiou-se numa árvore e logo que melhorou voltou a se dirigir à pessoa que estava caída. Caminhou mais treze passos e, num sutil movimento de se abaixar, reconheceu imediatamente a pessoa que estava morta ao seu lado.
Sim, estava morta e esse fato era irrevogável. Quando tocou o rosto dela e virou-o para si, seus olhos estavam sangrando como uma cachoeira. A pessoa que cometeu crime tão bárbaro fez questão de fazê-la sofrer. Havia dois cortes paralelos em sua face, começavam na testa percorrendo um trajeto linear até abaixo da bochecha.
Não gritou, não conseguiu! Abraçou-a com uma força descomunal e, naquele momento, seu único pensamento foi morrer junto com ela. Seu corpo frio lhe causou uma dor até então nunca sentida. A impotência diante da morte acabou com tudo.
Sem saber o que fazer, levantou-se e pegou-a no colo. Foi caminhando pela avenida cheia de carros e, naquele momento, nada mais lhe importava. Os sons das buzinas eram inaudíveis para ele. Tomou a pista central da avenida e continuou sua caminhada em direção a lugar nenhum.
Uma cena apavorante. Algumas pessoas passavam bem próximas a ele e xingavam sem perdão. Reduziam a marcha e, quando olhavam para seu rosto, não entendiam exatamente o que estava acontecendo. Um homem bem vestido, bonito, aparentemente de classe social abastada, carregando uma mulher em seus braços. O sangue dava um ar surreal à cena enquanto se esvaía levando os últimos sinais de vida da moça... um tapete ia se formando pelo caminho dos dois.
Em determinado momento alguns carros ficaram paralelos a eles e passaram a acompanhá-los lentamente em silêncio. Esse foi o início de um grande funeral. Ele não deu mais dois passos e todos passaram a segui-los.
Helicópteros surgiram no céu e passaram a usar refletores muito potentes para iluminar o caminho do homem. Todos os carros baixaram seus faróis e as famílias ficaram em silêncio dentro dos carros. Sequer olhavam para o homem carregando a mulher.
Já tinha andado uns quatro quilômetros e nada o abalava, fisicamente era o mesmo de quando começou a caminhada. Suava, isso sim; parecia que suas roupas haviam acabado de sair da água. Em determinado momento, alguns batedores tomaram à sua frente e por onde quer que ele passasse o trânsito era impedido. O que era aquilo? Como uma situação pôde assumir dimensões tão desproporcionais? (...) O que era aquilo?
Quando entrou no centro da cidade já fazia mais de duas horas que havia encontrado a moça. Ao pisar na avenida principal, nenhum carro mais estava trafegando por aquelas imediações e a população permanecia nas janelas dos edifícios acompanhando o funeral.
Àquela altura o sangue já não escorria com tanta fluidez, mas a dor dele era ainda maior, dor que o fazia continuar. Canais de televisão davam boletins ao vivo sobre o acontecido, somente desligavam suas luzes quando o homem passava por seus carros. Talvez uma atitude de respeito, talvez medo de ver de perto a face de um homem ferido no âmago de sua alma.
Alguns grupos tentaram puxar orações para acalentar a dor do homem, mas não conseguiram rezar nem a primeira estrofe. Não seria isso a amenizar-lhe a dor. Não havia o que dizer e só uma coisa a fazer, que era exatamente o que procurava executar naquele momento.
Não parou nem mudou um segundo sequer a posição como a carregava. O rosto dela estava protegido, encostado em seu peito. Sentia o pulsar de um coração dilacerado, um coração que faria qualquer coisa para restabelecer sua vida.
Quando chegou próximo a um edifício – sem ninguém entender, tampouco ter coragem para perguntar –, abaixou-se e abraçou a moça com uma ternura e dor até então nunca imaginável. Naquele momento chorou. Não um choro desesperado e alardeador, um choro mudo. De seu rosto mal se viam as lágrimas descerem... mas sentia a dor.
Os populares talvez tivessem pensado em ajudá-lo, mas permaneceram imóveis, apenas presenciando aquela situação inusitada. Num estádio de futebol, onde estava sendo decidido o título regional, as pessoas lentamente foram saindo do recinto sem dizer nada. Os jogadores, cada um em seu canto, foram sentando ou ajoelhando sobre o gramado... tudo ia acabando pavorosamente.
De repente ele olhou pro céu e, sem entender o que aquilo significava, viu os helicópteros desligarem seus refletores e aterrissarem no meio da avenida. Talvez nem fosse aquilo que ele pretendia, mas, sem dizer nada, os pilotos tomaram tal atitude.
Enquanto permaneceu olhando para o céu, uma chuva começou a cair. Uma garoa fina, mas densa. Aos populares nada incomodou, sequer abriram seus guarda-chuvas.
O homem levantou-se e, não sem antes beijar ternamente a face da moça e dizer-lhe qualquer coisa ao ouvido, passou a caminhar em direção ao edifício que estava à sua frente.
O portão estava aberto e as luzes apagadas, mas as escadas estavam iluminadas, degrau a degrau, por velas. Ele estava convicto do que tinha que fazer e foi subindo lentamente sem pensar em mais nada a não ser em seu destino.
Havia uma multidão em torno do edifício, talvez umas trinta ou quarenta mil pessoas. As pessoas mantinham o olhar voltado para o décimo oitavo andar, onde havia uma janela aberta e um pequeno foco de luz. Todos os apartamentos do prédio estavam apagados. Conforme o homem subia um andar, surgia na janela um morador que estendia um imenso tecido branco do lado de fora.
Era uma subida lenta, mas a cada tecido que surgia na janela, maior era a ansiedade dos populares. No fundo, todos sabiam o destino do homem e o porquê de aquilo tudo ter acontecido. Talvez soubessem até o desfecho dessa história, mas permaneciam calados... apenas, olhando.
Quando o morador do décimo sétimo andar surgiu à janela e estendeu seu tecido branco, algumas pessoas não conseguiram suportar a tensão do que estava por vir e se viraram. Outras, ainda mais fracas, tentaram ir embora daquele lugar... deram cinco ou seis passos, mas desistiram e permaneceram ali.
No momento exato em que o homem pisou no décimo oitavo andar e viu uma porta aberta, a população inteira que acompanhava o caso abaixou a cabeça e fechou os olhos. Pôde-se ouvir o soluçar e o choro contido de uma multidão, um coral de cúmplices na dor.
O homem foi entrando no apartamento e, logo na sala ampla e muito bem decorada, sentiu um calafrio, o mesmo que sentira há poucas horas. Sabia o que tinha acontecido e aquilo não mais o abalou. Deslocou-se alguns passos e viu uma velha senhora encostada à parede, cercada por fotografias, fantasmas e lembranças. Chegou até bem perto da senhora, que permanecia com a cabeça abaixada, colocou a moça no seu colo e beijou as duas.
A senhora tinha em suas mãos uma fotografia onde havia duas crianças e ela, bem mais nova. Um menino e uma menina, somente isso! Segurava com força tal que a única certeza que se poderia ter era de que ela não queria que aquele momento tivesse passado. Impotente perante o tempo, apegou-se a um momento e morreu agarrada a ele.
Aquelas duas mulheres mortas diante daquele homem demarcavam o fim de um ciclo, o fim de esperanças, de promessas, de expectativas... ele sentou-se ao lado delas.
O vizinho do décimo nono andar abriu sua janela e estendeu um tecido preto para fora de sua janela. A população levou um choque e foi se retirando lentamente, cada um com sua dor. Não mais de três minutos depois de os populares começarem a se retirar, o som de um tiro ecoou pelas ruas. Ninguém disse nada e continuou caminhando. Era tarde, e aquele tinha sido só mais um crime para constar nos autos criminais.

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