terça-feira, outubro 31, 2006

ADEUS, MENINOS

Depois do fracasso de “Quincas Berro D’água” e de eu ter deixado a companhia de teatro que trabalhava, tentei imaginar qual caminho deveria seguir adiante. A vantagem de trabalhar com uma companhia teatral estável, pelo menos para mim, deu-se no sentido de servir como incentivo para que eu produzisse muito... muito mesmo! Mas não havia como permanecer num grupo com objetivos tão distintos... precisaria trilhar minha carreira separadamente!
Assim, a partir de 1995, quis experimentar outras formas de dramaturgia. E, nesse sentido, o primeiro experimento foi uma das peças que mais gosto até hoje: “Adeus, meninos”.
Sempre gostei de histórias com temática política e, nesse universo, o período de repressão que o Brasil passou nas décadas de 1960 e 1970, foi objeto de muita leitura. Acho que o primeiro livro que li sobre o tema foi “O que isso companheiro?”, de Fernando Gabeira. Fiquei fascinado pelo engajamento político da juventude e sua coragem de lutar por um ideal... acabei lendo vários livros sobre o tema.
O processo de criação de “Adeus, meninos” foi completamente distinto de tudo que eu fizera até então. Criei os personagens e comecei a escrever cenas que os apresentasse... mas a diferença estava no fato de que eu trabalhava com quatro momentos de suas vidas: aos dez anos, aos quinze, aos vinte e aos sessenta... As cenas foram escritas separadamente, mas quando fui montar a ordem do espetáculo, quebrei completamente a ordem cronológica...
A peça inicia-se com Thiago e Pablo, com dez anos, falando sobre uma determinada menina... como nas demais peças que escrevi, a temática da amizade estava muito presente. Na seqüência vemos Thiago com vinte anos... e assim por diante... Cenas curtas, linguagem direta e uma sensação de que a cada cena estaria sendo colocada mais uma peça do quebra-cabeça que formava a trama.
Nas primeiras leituras do texto, a sensação que gerou aos atores foi a de haver uma tensão crescente na trama mas que não dava pra saber onde iria chegar... Entendi que havia conseguido alcançar meu objetivo.Essa peça nunca foi encenada... mas de tanto eu gostar da trama, adaptei-a para o cinema e escrevi o roteiro “Os meninos da casa da árvore”... Espero que a história de amizade entre Thiago, Pablo e Mariana torne-se conhecida um dia, até porque, é um texto que freqüentemente releio para saber que é sobre isso que quero escrever... amizade, em suas múltiplas formas!

Essa é uma das cenas da peça que mostra o estado de desolação que Mariana, mais velha, vive depois de ter acontecido algo muito grave em sua vida...

CENA III - O ELEVADOR

MARIANA, UMA VELHA SENHORA, ENTRA VAGAROZAMENTE NO HALL DE SEU PRÉDIO E VAI ATÉ O ELEVADOR. CARREGA CONSIGO UMA SACOLA DE SUPER MERCADO... ELA CHEGA ATÉ O ELEVADOR E APERTA O BOTÃO PARA ELE “DESCER”... FICA AGUARDANDO QUANDO ENTRA UMA MENINA DE APROXIMADAMENTE QUINZE ANOS E APERTA O BOTÃO DO ELEVADOR...

MENINA - Tô super atrasada, só vai dar tempo de almoçar e voltar pra escola. Hoje eu tive três provas.
MARIANA - (falando somente por educação) Deve ser bem difícil.
MENINA - É nada, se eu não tivesse preparado a “cola”, aí seria difícil, mas eu tava preparado. (olha para o elevador) E esse elevador que não chega!
MARIANA - Ele já deve estar descendo.
MENINA - A senhora tem tempo pra esperar, eu não posso. Minha vida é uma correria.
MARIANA - (pensativa) Eu posso esperar...
MENINA - A senhora não se cansa de ficar sozinha?
MARIANA - A gente se acostuma.
MENINA - (furiosa) Não dá pra se acostumar é com esse elevador.

ENTRA NO PRÉDIO UM HOMEM DE APROXIMADAMENTE 28 ANOS, VESTINDO UM ELEGANTE TERNO AZUL MARINHO E CARREGANDO UMA PASTA...


HOMEM - (apertando o botão do elevador) Boa tarde.
MENINA - (insinuante) Oi!
MARIANA - (sóbria) Boa tarde.
HOMEM - Hoje o dia tá uma correria, parece que tudo resolveu acontecer de uma vez.
MENINA - É o que eu tava falando pra Dona Mariana.
HOMEM - (para Mariana) A senhora viu se minha mulher já chegou?
MARIANA - Não.
HOMEM - É que a senhora quase não sai.
MARIANA - Hoje eu não vi a sua mulher.
HOMEM - Ela deve ter ficado presa no trânsito, (pensativo) vou ter que fazer o almoço. Tomara que dê tempo!
MENINA - (insinuante) Minha mãe já deve ter feito o almoço, se você quiser almoçar em casa, não vai ter nenhum problema.
HOMEM - Obrigado, eu não posso. Fica pra uma outra vez. (aperta o botão do elevador novamente) Tá demorando, né?
MENINA - Vou acabar indo de escada.
MARIANA - Ele já deve estar descendo.

ENTRAM DOIS MENINOS DE UNS DEZ ANOS, VESTIDOS DE UNIFORMES ESCOLARES...

MENINO 1 - (apertando o botão do elevador) Vai começar o jogo.
MENINO 2 - Se essa droga demorar, a gente vai acabar perdendo o começo.
MENINA - Aqui não é lugar de fazer barulho.
MENINO 2 - Você é velha por acaso?!
HOMEM - (reprimindo) Quietos.
MENINO 2 - (olhando para Mariana) Eu não vi a senhora aí.
MARIANA - Não tem problema.
MENINO 1 - É que o jogo vai começar, é a final.
MENINO 2 - Eu apostei que ia ser dois a zero.
MARIANA - Tomara que você ganhe.
MENINO 1 - Tomara nada, vai ser é três a zero, mas pro meu time.
MENINO 2 - Até parece que aquele timinho vai conseguir ganhar do meu.
MENINA - Alguém deve tá segurando o elevador lá em cima.
HOMEM - (batendo na porta) Solta o elevador!

ENTRA UMA MULHER COM UM CARRINHO DE FEIRA...

MULHER 1 - (passando por Mariana) A senhora me dá licença que eu tô acabada, (aperta o botão do elevador) fazer feira é de arrasar.
MARIANA - Claro.
MULHER 1 - (para a menina) Fala pra sua mãe passar lá em casa.
MENINA - Minha mãe não tem tempo pra ficar vadiando.
MULHER 1 - Olha lá como fala comigo, sua moleca!
MARIANA - (apaziguando) Esse elevador está demorando.
MENINO 1 - Você vai lá em casa ou eu vou na sua?
MENINO 2 - Teu irmão vai tá lá?
MENINO 1 - Claro, ele não larga da televisão.
MENINO 2 - Então é melhor a gente ir lá pra casa porque eu não vou com a cara dele.
HOMEM - Esse elevador tinha que encrencar logo agora!

ENTRA A MULHER DO HOMEM QUE HAVIA CHEGADO POUCO ANTES, ESTÁ MUITO APRESSADA E ENCONTRA AQUELE AGLOMERADO EM FRENTE AO ELEVADOR; ELA ESTÁ MUITO BEM VESTIDA...USANDO SALTO ALTO QUE APERTA SEU PÉ...

MULHER 2 - (para o Homem, seu marido) O que você tá fazendo aqui?
HOMEM - Esse maldito elevador.
MULHER 2 - E o almoço?
HOMEM - É isso que eu tô pensando.
MULHER 1 - Alguém tem que dar um jeito nisso.
MENINO 1 - (para Menino 2) Bate na porta.
MENINO 2 - E eles não vão falar pro síndico?!
TODOS - (exceto Mariana) Bate logo!

MENINO 2 CHUTA A PORTA DO ELEVADOR DESESPERADAMENTE ENQUANTO O MENINO 1 GRITA E VIBRA... APÓS ALGUNS INSTANTES E NENHUM RESULTADO, ELE PÁRA DE CHUTAR E TODOS VOLTAM A ESPERAR CHATEADOS...

MULHER 2 - Hoje não é o meu dia. (tira os sapatos)
MARIANA - Será que aconteceu algum acidente?
MULHER 1 - (esbravejando) Algum moleque vagabundo que deve ter prendido o elevador pra fazer graça.
MENINA - (jogando os livros no chão) Eu não acredito!!!

ELEVADOR CHEGA DE REPENTE E TODOS PEGAM SUAS COISAS RAPIDAMENTE E ENTRAM NELE, MARIANA FICA SEGURANDO A PORTA E POR FIM, ACABA NÃO ENTRANDO DEVIDO ELE ESTAR LOTADO...

HOMEM - Solta a porta, Dona Mariana.
MULHER 1 - A senhora sobe depois; não tem nada pra fazer mesmo.
MARIANA - (soltando a porta)(caindo em si) É...não tenho nada mesmo pra fazer.

A PORTA SE FECHA E O ELEVADOR SOBE...MARIANA FICA ALGUNS INSTANTES OLHANDO PARA ELE...

MARIANA - (lamentando) Já faz tempo que pouco importa subir ou descer. (pára alguns instantes e depois aperta novamente o botão do elevador)

ENTRA UM RAPAZ COM UMA ENCOMENDA, VAI ATÉ O ELEVADOR E APERTA O BOTÃO...

RAPAZ - Hoje o dia tá uma correria, depois dessa encomenda preciso entregar mais quatro.
MARIANA - (pressentindo o que iria acontecer novamente) É... (se vira e vai saindo)

RAPAZ APERTA NOVAMENTE O BOTÃO DO ELEVADOR E AS LUZES VÃO SE APAGANDO...

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